segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Para sair do século XX: desafios da reforma do Estado em Moçambique (2)

Considerando o espírito e as disposições da Carta da Função Pública Africana  (disponível aqui), e os debates sobre a modernização da administração pública no continente (ver aqui), retomo minhas leituras e reflexões sobre os desafios da reforma do Estado em Moçambique. 

Proponho-me, assim, a reflectir sobre a relação entre a competência informacional e as estratégias para a gestão da informação no setor público moçambicano, uma vez que a referida Carta  entende a transparência e a informação como alguns dos critérios dos serviços da administração pública. Assim, o meu exercício visa, essencialmente, apontar para a necessidade de se desenvolver e/ou mobilizar, em Moçambique, esse tipo de competência (informacional) e vinculá-la ao conjunto de acções que objectivam a capacitação das instituições públicas para a gestão e disseminação de documentos gerados, registados e processados no decurso das actividades da administração pública.

Na tentativa de cobrir meu exercício de um quadro teórico-conceitual minimo,  sou obrigado a definir alguns conceitos básicos. Partirei das proposições terminológicas de Zarifian (2003, p.137) para definr a competência  como (i)  inteligência prática das situações, que se apóia em conhecimentos adquiridos e os transforma à medida que a diversidade das situações aumenta; ou (ii) faculdade de mobilizar redes de actores em volta das mesmas situações, de compartilhar desafios, e assumir áreas de responsabilidade (o grifo é meu).

Fleury e Fleury (2001, p.185) relacionam o conceito de competência às estratégias organizacionais, e aos processos de aprendizagem, e afirmam que embora o foco de análise do conceito de competência seja o sujeito, a literatura está sinalizando para a importância do seu alinhamento às necessidades estabelecidas pelos cargos, ou posições existentes nas organizações.

Por outro lado, o crescente impacto das TIC nas organizações tem suscitado, embora de forma tímida, um debate com vistas a identificação, definição e desenvolvimento de um tipo específico de competência, a competência informacional. Segundo Barbosa (2008, p.22), competência informacional é um conceito que pode ser aplicado tanto a pessoas como a organizações, e diz respeito à capacidade de utilizar a informação, as novas TIC e o conhecimento de maneira efetiva, em favor da sobrevivência e competitividade organizacional.
 Desse modo, afirma Ortoll (2003, p.4-6), se faz necessário identificar e desenvolver essa competência, que tem um carácter transversal. Ou seja, como afirmou Barbosa (op.cit.) trata-se de uma competência, por um lado, vinculada ao manuseio das TIC, e, por outro lado, aos aspectos relacionados com o acesso e a utilização da informação, o que permite as instituições pocisionarem-se e actuarem de forma efectiva no contexto informacional que caracteriza a nova sociedade. A competência informacional, continua Ortoll (op.cit.), “adquiere especial relevancia en las organizaciones en las que existen proyectos de gestión de la [información], ya que [...] la información y su gestión, desde el punto de vista tanto organizacional como individual, desempeñan un papel fundamental”.
Vale referir, entretanto, que para efeitos do presente texto a competência informacional é entendida como um conjunto de habilidades [...] organizacionais ligadas ao perfil de um profissional da informação (arquivista, bibliotecário, documentalista, consultor da informação, arquiteto e gestor de sistemas de recuperação de informações, entre outros) ou de uma actividade baseada intensivamente em informação expressas pela capacidade em lidar com o ciclo informacional, com as tecnologias da informação e com os contextos informacionais (Miranda, 2004, p.118),
O ciclo informacional identifica todas as fases do trabalho com a informação: determinação das necessidades de informação, colecta, processamento, distribuição e uso da informação. Por tecnologia da informação podemos entender o conjunto de instrumentos que influem na arquitectura da informação (formato, suporte, tipo, capacidade, etc), que envolve computadores, telecomunicação e softwares que ajudam na organização, transmissão, armazenamento, acesso e utilização da informação. O contexto informacional é o contexto no qual se realiza o ciclo informacional e que influencia no seu fluxo e suas características: informação administrativa, informação tecnológica, informação para negócios, informação científica, etc (ibidem).
Em virtude do foco aqui ser a administração pública, vou tratar do contexto  informacional nesse âmbito, ou seja, no âmbito da informação administrativa, orgânica ou de domínio público. E, com vistas a vincular a competência informacional aos processos de gestão da informação  na administração pública, esta última será tratada como uma organização. Nessa perspectiva, a administração pública é entendida como um conjunto de unidades de produção e processamento de informações, que interpreta seu ambiente, coordena suas atividades e facilita a tomada de decisões processando informações horizontal e verticalmente, através de uma hierarquia vertical (Robbins, 1990, p.11, tradução livre).

Na verdade, algumas das características mais comuns da administração pública como função e organização formalmente estabelecida, de acordo com Jardim (1999, p.30) são a geração, processamento técnico e consulta a informações registradas, decorrentes mesmo de suas actividades. Nesse sentido, continua Jardim (op.cit.), os serviços de gerenciamento da informação representam um aspecto institucionalizante da administração pública. A informação por esta produzida constituiria, por outro lado, uma linguagem que lhe é própria e indispensável à sua sobrevivência e operações. As demandas de funcionamento, coesão e modernização da administração pública justificariam, assim, os seus serviços de informação, como o gerenciamento desta, o desenvolvimento da competência informacional, como fizemos referência acima, além de outros com características específicas.
Ampudia Mello (1988 apud Jardim, 1999, p.30) afirma que dois fenômenos  sinalizam os processos informacionais no âmbito da administração pública: o primeiro, que pode denominar-se objetivação consiste em que a informação institucional se assenta sempre sobre um suporte material (o documento); o segundopode chamar-se de formalização e consiste em que, dentro das instituições, a informação circula através de canais prévia e claramente estabelecidos, integrando redes que unem hierarquicamente a todas e cada uma das partes que as compõem. Tal informação objetivada “são os documentos e arquivos que durante tantos séculos a administração pública tem se empenhado em produzir, assim como os canais formais de informação são os sistemas internos que esta criou para gerar, distribuir e conservar seus registros”.
Em Moçambique, realidade empírica do presente texto, a ausência de directrizes, normas e orientações técnico-metodológicas para a criação, gestão e manutenção de sistemas  de informação (arquivos, especialmente) institucionalizados na administração pública levou a aprovação em 2006, pelo Conselho de Ministros,  da "Estratégia para a Gestão de Documentos e Arquivos do Estado".
A ser implementada, a referida estratégia se constitui, por conseguinte, numa importante fonte para o desenvolvimento da competência informacional no aparelho do Estado. Paralelamente, foi apravado em 2007, igualmente pelo Conselho de Ministros, o Decreto nº. 36 /2007, de 27 de Agosto, que altera o Sistema Nacional de Arquivos criado pelo Decreto nº 33/92, de 26 de Outubro, passando a denominar-se Sistema Nacional de Arquivos do Estado, abreviadamente designado SNAE, e o Plano de Classificação de Documentos para as Actividades Meio, a Tabela de Temporalidade e Destinação de Documentos para as Actividades Meio da Administração Pública e o Classificador de Informações na função pública. Trata-se de mais uma fonte para a competência informacional na Administração pública em Moçambiuque.
Em que pese a importância dos documentos (normativos) referidos acima para o desenvolvimento da competencia informacional  na Administração pública em Moçambiuque, um dos grandes constrangimentos das unidades documentais (arquivos, bibliotecas, centros de documentação e informação) nesse sector, como já foi reconhecido publicamente, prentede-se com o ”fraco conhecimento dos princípios básicos de organização dos sistemas de documentação e arquivo por parte dos decisores e quadros técnicos” das instituições estatais e/ou públicas. Dito de outro modo, regra geral, ao nível das instituições do sector público “a área de documentação e arquivos é assegurada por poucos profissionais qualificados e sem formação técnica específica desta área, o que é agravado pela sua subvalorização” (Moçambique, 2006).
Para essa realidade concorrem, pelo menos, dois factores: o primeiro tem a ver com o facto de até em 2009, ano em que teve início o curso superior de Ciência da Informação, na Escola de Comunicação e Artes, da Universidade Eduardo Mondlane, o Instituto Médio de Ciências Documentais (CIDOC) era a única instituição de formação, em nível técnico médio, nessa área. O segundo, refere-se ao facto de que tanto o curso do CIDOC (médio) quanto o da UEM (superior) estarem concentrados apenas na capital do país, cidade de Maputo, comprometendo, assim, as possibilidades de acesso dos profissionais de outras províncias, e, por conseguinte, a disponibilidade de recursos humanos qualificados no mercado de trabalho, mormente para o sector público.
Assim, para minimizar a falta de recursos humanos qualificados, com competências técnicas requeridas para o trabalho com a informação e arquivos, e fazer face aos desafios da reforma do sector público nessas áreas, será necessário (i) expandir as instituições de ensino técnico-profissional a todos os níveis; e (ii) desenvolver planos/programas de formação e treinamento regulares nas referidas áreas, em instituições públicas. Será necessário, por outro lado, institucionalizar, ao nível do sector público, unidades específicas vinculadas aos processos de organização, processamento técnico e gestão de de documentos e arquivos do Estado/públicos.
Portanto, a inversão desse cenário seria o ponto de partida para a implementação, com sucesso, da "Estratégia para a Gestão de Documentos e Arquivos do Estado" e do SNAE. Vale, assim, lembrar, que se por um lado a estrutura orgânica da maioria das instituições públicas em Moçambique não contempla unidades/sectores de documentação e informação, e/ou arquivo. Por outro lado,  os profissionais vinculados às poucas unidades de informação e documentação existentes no país, incluindo os arquivos e centros de documentação e informação, continuam sem formação específica para trabalhar na área.

sábado, 24 de julho de 2010

Para sair do século XX: os desafios da reforma do Estado em Moçambique (1)

Considerando os avanços que Moçambique tem estado a registar no plano da construção de políticas e estratégias que visam capacitar e modernizar a máquina administrativa do Estado, e aproveitando as oportunidades que as novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nos proporcionam nestes novos tempos, abri este espaço para me juntar aos debates e reflexões sobre os desafios e perspectivas de desenvolvimento nacional e, quiçá, visualizar propostas que possam evitar descontinuidades nos esforços para a capacitação das instituições públicas nacionais.

Nesse sentido, elegi a Estratégia Global da Reforma do Sector Público, aprovada em 2001, como objecto das minhas reflexões inicias sobre desafios de Moçambique contemporâneo. Em respeito ao meu ofício, e porque a proposta da reforma coincide com o processo de construção da sociedade da informação em Moçambique, minhas reflexões se inscrevem na dimensão informacional da referida estratégia.

Partilho da opinião de que o sucesso da reforma do setor público em Moçambique depende muito da existência de estruturas institucionais estáveis, que operacionalizem, ao nível da administração pública, práticas de organização e gestão de recursos informacionais, não apenas como pressuposto para a salvaguarda da memória institucional mas, sobretudo como forma de elevar o nível de eficácia e eficiência na satisfação dos serviços prestados ao público.

A Estratégia para a Gestão de Documentos e Arquivos do Estado, aprovada em 2006, torna evidente, nesse sentido, a importância de profissionalização de recursos humanos. Aliás, um dos seis (6) componentes da reforma do setor público em curso no país é exatamente o desenvolvimento e consolidação do sistema de recursos humanos desse setor, ou seja, a necessidade de elevação do grau de profissionalismo, competência, ética e deontologia dos funcionários e agentes do Estado “como condição para a melhoria da qualidade de prestação de serviços públicos”.

Para tanto, será necessário não somente o desenvolvimento do sistema de formação em Administração Pública, como já está ocorrendo, mas, também a introdução de matérias e/ ou cursos específicos de gestão da informação e documentação e a expansão das instituições de formação para todas as provincias do país. Implica, por outro lado, no desenvolvimento da cultura e competência informacionais a todos os níveis das instituições do setor público.

Trata-se da necessidade de empreendermos um grande esforço para aliar a teoria com a acção. Um esforço que nos permite evitar a dissincronia entre os três elementos que medem o nível da capacidade institucional do setor público, quais sejam, capacidade política; autoridade de execução e a eficiência operacional. Do ponto de vista político, e como se fez referência no início, há um notável avanço, mormente traduzido na elaboração de estratégias com vistas a modernização e capacitação institucional do setor público em Moçambique. Prova disso, são as citadas Estratégia Global de Reforma do Setor Público em curso no país e, no caso particular da gestão da informação a esse nível, a Estratégia para a Gestão de Documentos e Arquivos do Estado, aprovada em 2006. Em parte, estes documentos se configuram de capital importância como fontes para o desenvolvimento da competência informacional nas instituições do setor público no país.

Contudo, se por um lado a mobilização da competência informacional se constitui em uma estratégia relevante para o sucesso da gestão da informação e documentos do Estado, por outro, esta última (a gestão da informação e documentos) assume capital importância do ponto de vista da modernização e capacitação institucional do setor público.

Para maior elucidação teórica do exposto acima, faz-se necessário uma reflexão sobre a relação entre a competência informacional e as práticas de gestão da informação e sua respectiva relevância para o setor público. Farei isso numa próxima ocasião, tomando como objecto empírico de análise a Estratégia para a Gestão de Documentos e Arquivos do Estado, aprovada pelo Conselho de Ministros, através da Resolução n.º 46/2006 de 26 de Dezembro e outros documentos pertinentes.